quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O primeiro artigo a gente nunca esquece...

Estranho perceber como, a princípio, dez páginas representam um problema de excesso de espaço, afinal, você não possui bagagem teórica e experiências suficientes para preenchê-las. Entretanto, com o transcorrer do semestre, essas mesmas dez páginas se tornam um problema ainda maior, agora, pela limitação e falta de espaço. Como podem limitar seu artigo a, miseras, dez páginas?

Pois é. Esse foi meu primeiro filho no Mestrado, foi feito com esforço, não é o melhor, mas, é o princípio.
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A CONSTRUÇÃO DO FIADOR: Relação de Interdependência dos Conceitos de Ethos e Cenografia na Crônica “Recado ao Senhor 903”, de Rubem Braga.

Aluna: Luci Cleide Cardoso
Universidade Cruzeiro do Sul
1. Considerações Iniciais
A crônica “Recado ao Senhor 903”, de Rubem Braga, é parte do livro “A Cidade e a Roça”, lançado em 1957, e relançado com o título “O Verão e as Mulheres”, reunindo 32 (trinta e duas) crônicas publicadas entre 1953 e 1955, o texto está entre aqueles que abordam questões sociais mais relevantes.
O autor narra vários eventos, aparentemente corriqueiros, que ganham nova dimensão e relevância graças ao seu discurso, estilo e subjetividade. Há, na verdade, uma crítica às relações desumanizadas nas grandes cidades, em que pessoas são tratadas apenas como números. O que nos surpreende, ao final, é o convite à comunhão, no lugar da intolerância.
O objetivo desta pesquisa é analisar, através de conceitos da Análise do Discurso, de linha francesa, a construção do enunciado por meio do tom e dinâmica corporal atribuída ao fiador. Investigamos também, como essa dinâmica envolve o coenunciador, que captado pelo ethos e envolvido pela cenografia, torna-se adepto ao discurso do enunciado.
O discurso é muito mais do que argumentar e persuadir. Seu enunciado deve conferir-lhe corporalidade (fiador). O leitor deve incorporar e aderir a esquemas que correspondem a estereótipos (a sua própria maneira de inscrever-se no mundo) e tais incorporações é que permitirão a adesão ao discurso.
Destacamos, quanto aos pressupostos teóricos de análise, que adotamos em especial aqueles trazidos por Dominique Maingueneau (1997).

A crônica apresentada, como típico do gênero, extrai elementos da realidade e propõe uma releitura, todavia existem peculiaridades que a tornam atemporal (diverso da crônica de jornal), tais como, o suporte material (duradouro) e as características literárias na composição de seus enunciados, que possibilitam transpor os níveis da efemeridade. Há, de fato, um “recorte do cotidiano”, mas utiliza-se muito do ficcional e da subjetividade.

Rubem Braga está registrado em nossa literatura como um cronista preocupado com as relações humanas. Isto também está evidenciado na crônica sob análise. O ethos, por meio da enunciação, revela um sujeito cuja ideologia é a religiosa. O texto, em questão, está repleto de referências à mitologia cristã e à natureza, que permitem relacionar a crônica com os tipos narrativos e exposição poética. Este ethos revela também, um homem boêmio, fraternal, irônico (no sentido apresentado por Berrendonner, como uma atitude defensiva) e pacífico.


2. Fundamentação Teórica

Não obstante nossa pesquisa ressaltar a questão do “fiador”, tal conceito está imbricado à noção de ethos e cenografia, trazidos por Dominique Maingueneau na década de 1980, que retomando o ethos retórico, de Aristóteles, e a distinção entre sujeito empírico e locutor, aduzidos por Oswald Ducrot (1984), acresceu prolongamentos relevantes e distinções ao que chamamos hoje de ethos discursivo.

Para Aristóteles o ethos (retórico) está relacionado à boa impressão que o sujeito quer transmitir ao auditório. Em melhores palavras, a prova pelo ethos consiste em causar boa impressão mediante a forma com que se constrói o discurso, em dar uma imagem de si capaz de convencer... (POSSENTI, 2008, p. 56).

Oswald Ducrot acentuou distinções:

Não se trata de afirmações elogiosas que o orador pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do discurso, afirmações que correm o risco, ao contrário, de chocar o auditório, mas da aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, dos argumentos...Em minha terminologia, direi que ethos está associado a L, o locutor enquanto tal: é na medida em que é fonte da enunciação que ele se vê revestido de certos caracteres que, em consequência, tornam essa enunciação aceitável ou refutável (POSSENTI, 2008, p. 59)

Maingueneau trouxe uma concepção de ethos voltada para a análise do discurso:

Minha perspectiva ultrapassa bastante o quadro da argumentação. Além da persuasão pelos argumentos, a noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral da adesão dos sujeitos a determinado posicionamento... Ao meu ver, a noção de ethos é interessante por causa do laço crucial que mantém com a reflexividade enunciativa, mas também porque permite articular corpo e discurso em uma dimensão diferente da oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como uma “voz”, associada a um ‘corpo enunciante’ historicamente especificado.” (apud POSSENTI, 2008, p. 64) (grifos nossos)

Assim, finalmente, alcançamos o ponto que nos interessa. O autor nos traz o conceito de ethos para textos escritos (lugar em que se concretiza o discurso), afirmando que todos possuem uma “vocalidade”, que nos permite associá-la a “uma caracterização do corpo do enunciador”, a “um fiador, que por meio do ‘tom’, atesta o que é dito” (2008, p. 64). Este “fiador” é a instância que constituirá o ethos e validará a cenografia por meio do processo enunciativo, por isso, como já afirmamos, são indissociáveis.

Sobre o “fiador”, Maingueneau, em ato continuo, conceitua:

Isso que dizer que optei por uma concepção mais ‘encarnada’ do ethos, que, nessa perspectiva, recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto das determinações físicas e psíquicas associadas ao ‘fiador’ pelas representações coletivas. Assim, acaba-se por atribuir ao fiador um ‘caráter’ e uma ‘corporalidade’, cujo grau de precisão varia segundo os textos. O ‘caráter’ corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à ‘corporalidade’, ela é associada a uma compleição física e a uma forma de se vestir. Além disso, o ethos implica uma forma de mover-se no espaço social, uma disciplina tácita do corpo, apreendida por meio de um comportamento. O destinatário o identifica apoiando-se em um conjunto difuso de representações sociais, avaliadas positiva ou negativamente, de estereótipos, que a enunciação contribui para reforçar ou transformar. (apud POSSENTI, 2008, p. 65) (grifos nossos)


Em poucas palavras, o autor determina assim, o “fiador” como uma concepção que dá forma ao ethos, ao qual por meio da enunciação atribuí-se um caráter e uma corporalidade, que, por conseguinte, é incorporado pelo destinatário (relaciona-se o fiador a um estereótipo, segundo a maneira como o próprio leitor se relaciona com o mundo ético – cultural, associado a comportamento), confirmado ou alterado pela enunciação.

Maingueneau associa o significado de “incorporação” ao modo como o destinatário se apropria do ethos, atuando por meio de três registros:

- a enunciação da obra confere uma ‘corporalidade’ ao fiador, ela lhe dá corpo;
- o destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de relacionar-se com o mundo habitando seu próprio corpo;
- essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso (apud POSSENTI, 2008, p. 65) (grifos nossos)

A corporalidade somatizada à incorporação feita pelo coenunciador cria um vínculo que atribui sentido à existência do próprio discurso.

O texto de nossa análise deixa bastante evidente a importância da figura do fiador (um sujeito voltado ao discurso mitológico cristão, benevolente) na constituição do ethos (sujeito compreensivo e apaziguador para com seus vizinhos) e da cenografia (prédio urbano, onde o barulho não é tolerado). É esse conjunto que faz com que o coenunciador venha a aderir ao discurso como verdadeiro, digno de fé e razão, em melhores palavras: o poder de persuasão de um discurso decorre em parte do fato de que ele leva o destinatário a identificar-se com o movimento do corpo, por mais esquemático que seja, investido de valores historicamente especificados. (apud POSSENTI, 2008, p.72).

É necessário trazer a baila o que Maingueneau conceitua como ethos e cena da enunciação. Quanto ao último, assim é entendido:

Por meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar, inscrito na cena de enunciação que o texto implica. Essa ‘cena de enunciação’ se compõe de três cenas, que propus chamar ‘cena englobante’, ‘cena genérica’ e ‘cenografia’ (Maingueneau 1993). A cena englobante atribui ao discurso um estatuto pragmático, ela o integra em um tipo: publicitário, administrativo, filosófico...A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, mas construída pelo próprio texto...A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação...A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de fala...A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso egendra: ela legitima um enunciado que por sua vez, deve legitimá-la... (apud POSSENTI, 2008, p. 70-71)


Na crônica analisada, podemos com segurança, distinguir  a cena englobante, como a literária; a cena genérica, a crônica, e a cenografia, que é o que a enunciação instaura: o Prédio no centro urbano do Rio de Janeiro da década de 1950.

Com relação ao ethos, Dominique Maingueneau (2011) faz as seguintes distinções:

ü  ethos pré-discursivo (extra-discursivo), situação em que o enunciador ocupa constantemente a cena midiática e tem associado um ethos que pode ou não se confirmar em enunciações distintas.
ü  ethos discursivo (mostrado), que está mais próximo à concepção de Aristóteles.
ü  E, por fim, o ethos dito, fragmentos do texto em que o enunciador evoca a própria enunciação ou a própria maneira de enunciar.


É por este último ethos, o dito, que se constrói a figura do que o autor chama de antifiador. Trata-se da personificação de um corpo que se opõe ao discurso do fiador, ou seja, assim como a enunciação confere corporalidade ao enunciador que ela materializa, admitindo a construção do corpo da comunidade imaginária daqueles que aderem a um determinado discurso, esta mesma enunciação pode também criar um anti-ethos (uma imagem distorcida que equivaleria ao oposto do discurso do fiador).
O enunciador da crônica “Recado ao Senhor 903”, possui um ethos pré-discursivo, posto que Rubem Braga, além de relevante escritor, ocupou cargos públicos e envolveu-se em questões sociais, como o movimento constitucionalista (1932) e o cargo de embaixador em Marrocos entre 1961 e 1963. Tais fatos podem nos induzir a interpretações e inferências além daquelas que o texto permite. Por esta razão, enquanto analistas, tomamos especial cuidado.
Quanto ao ethos discursivo, aquele que realmente nos interessa para objeto de análise, veremos, mais adiante, como seu enunciado remete à questão do sagrado (ao texto sagrado), à natureza e ao homem em sua essência, além de, também, se constituir por meio da figura de um antifiador, posto que em parte do enunciado o enunciador nos parece estar alheio, não fazer parte daquela cena constituída, buscando no discurso cristão argumentos que desvalorizem o mundo regrado e individualizado, criado pelo homem sob o prisma da razão e do egocentrismo.
Por fim, é digna de nota a questão ideológica que norteia a crônica de Braga. Existe uma forte relação polêmica entre a formação discursiva religiosa e a política (ligada à legalidade), na qual o enunciador desqualifica seu adversário, que é a lei e a ordem acima das questões humanísticas, exaltando a paz e a comunhão.
Nenhum discurso está livre de marcas ideológicas do sujeito, neste caso, a crônica revela um enunciador que conhece a realidade da sociedade urbana, regida por direitos e deveres individuais, apática e inerte com relação às condições humanas. Consoante Brandão,
(...) a ideologia escamoteia o modo de ser do mundo. E esse modo de ser do mundo, veiculado por esses discursos, é o recorte que uma determinada instituição ou classe social (dominante) num dado sistema (por exemplo, o capitalista) faz da realidade, retratando assim, ainda que de forma enviesada, uma visão de mundo. (apud AMOSSY, 2011, pp. 31-32).

Verificamos, por meio do discurso, que o enunciador evidencia e traça severas críticas a esse comportamento capitalista, em que “ter” é mais relevante que “ser” (principio filosófico e psicanalítico, Erich Fromm), em que a posse determina o individualismo e um mundo ditado por regras de convivência, em que um não importune o outro.
Esse aspecto da análise relaciona-se ao que Maingueneau conceitua de “Heterogeneidade Constitutiva”, que incide sobre manifestações não marcadas na superfície do texto, porém a análise do discurso pode defini-las, formulando hipóteses, por meio do interdiscurso, a respeito da constituição de uma formação discursiva.
Fala-se de ‘heterogeneidade constitutiva’ quando o discurso é dominado pelo interdiscurso: o discurso é somente um espaço no qual viria introduzir-se, do exterior, o discurso do outro; ele se constitui através de um debate com a alteridade, independente de qualquer traço visível de citação, alusão etc. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2012, p. 261)
Dominique Maingueneau aborda também a “Heterogeneidade Mostrada”:
A ‘heterogeneidade mostrada’ corresponde à presença localizável de um discurso outro no fio do discurso. Distinguem-se as formas não marcadas dessa heterogeneidade e suas formas marcadas (ou explícitas). O coenunciador identifica as formas não marcadas (discurso indireto livre, alusões, ironia, pastiche...) combinando em proporções a seleção de índices textuais ou paratextuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao contrário, são assinaladas de maneira unívoca; pode tratar-se de discurso direto ou indireto, de aspas, mas também de glosas que indicam uma não coincidência do enunciador com o que diz...). (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2012, p. 261).
Sob esse aspecto, percebemos que o texto é narrado em primeira pessoa e predomina o discurso direto (necessário relevar o uso do gênero recado como suporte apelativo do enunciador) o efeito polifônico mais iminente é a Ironia, embora com dimensões muito mais defensivas do que ofensivas, afinal, o intuito é discordar da forma impessoal como os sujeitos se relacionam. Por conseguinte, é também esse tom irônico que personificará e dará voz ao antifiador.
Há também os usos das aspas nos dois parágrafos finais, cujo objetivo é atribuir caráter de autoridade, veracidade, posto que remete, através da intertextualidade, ao texto sagrado da mitologia cristã (compartilhar o pão e o vinho).  O uso das aspas também representa hipótese, algo irreal no contexto desenvolvido pelo discurso.

3. Condições de Produção e Recepção da Crônica de Braga
Conforme dissemos anteriormente, o texto foi escrito entre os anos de 1953 e 1955, para integrar o livro “A Cidade e a Roça”. Não houve publicação em jornal (como seria típico), certamente, por esta razão, possui muitas características do gênero literário (subjetivo e estruturado tipologicamente sob a narrativa e a exposição poética). O suporte também é duradouro, diverso do jornal. O livro permite que o texto dure por mais tempo.
Cumpre-nos destacar que o sujeito empírico, Rubem Braga, morou no Rio de Janeiro (em Copacabana) à época em que escreveu “Recado ao Senhor 903”, pôde observar o contexto e as consequências da modernização do espaço urbano. As crônicas do autor durante a década de 1950 retratam bem as grandes mudanças de caráter social, cultural e urbano na cidade (antiga capital), por isso a problematização dessa crônica nos parece tão real, quase como um relato.
Aliás, Braga contribuiu imensamente para o reconhecimento do gênero crônica durante a década de 1930, quando se popularizou por meio dos principais jornais do Rio de Janeiro. Considerada como um gênero menor entre os textuais, segundo Antonio Candido (1992), por não termos literatura constituída apenas de crônicas, ela passou a permitir que o cronista pudesse transitar entre o jornalístico, o histórico e o literário, mantendo características próprias (ambiguidade, brevidade, subjetividade, diálogo e durabilidade relativa, conforme o suporte – jornais, revistas, livros ou internet).
Na crônica, Recado ao Senhor 903, em especial, observamos a princípio um contexto imediato, que é o prédio, em que vizinhos se desconhecem por nomes próprios, referindo-se uns aos outros pelos números dos apartamentos, os quais são lembrados somente em momentos de conflito.
O enunciador recria o cenário urbano da década de 1950, sendo o morador de um apartamento cravado, exatamente no meio, entre os vizinhos a quem chama de 903, 1001, 1004, 1005 e 1103. Ele é o causador de barulhos inoportunos em horários contrários ao regimento do prédio e à própria lei.
Existe uma clara crítica ao individualismo, à falta de intimidade e calor humano, além da intolerância entre iguais. O texto revela também um interdiscurso religioso (comunhão, intenção de ressuscitar aquele que foi crucificado, não corrupção das relações humanas).

5) Da Constituição do Fiador ao Antifiador. Elementos de formação do Ethos e da Cenografia.
Vizinho,(...) Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003.Ou melhor; é impossível ao 903 quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.
O início da crônica é marcado por frases de períodos curtos, ausência de parágrafos e pensamentos fragmentados. Ao que nos parece o enunciador tem pressa; pressa em dizer logo a que veio, em não ocupar desnecessariamente o tempo do outro, em ser breve e impessoal como são os números a que se atribuem uns aos outros.
Por conseguinte, verificamos que não se destaca no fiador a corporalidade, mas, sim, o caráter. Esse primeiro enunciado conduz o coenunciador a constituir um fiador pautado em bom senso, compreensivo, que reconhece seu erro e verifica a razão e a ordem que guarnecem seu vizinho.
Por outro lado, esse mesmo fiador produz no enunciado um tom irônico, justamente pela indefinição de nomes, que se limitam ao “homem do 1003” e ao “Senhor 903” (empilhados entre dezenas de outros). Números não refletem estado de humor, não reclamam, são expressão do exato, do incontestável. A ironia está no jogo com os números, que cria efeito de humor e crítica. Segundo Maingueneau, ao tratar da heterogeneidade mostrada, a ironia se caracteriza por meio de um enunciado que
...faz ouvir uma voz diferente da do ‘locutor’, a voz de um ‘enunciador’ que expressa um ponto de vista insustentável. O ‘locutor’ assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam. Evidentemente, isto exige que uma marca de distanciamento apareça entre as palavras e o ‘locutor’; caso contrário, o ponto de vista do ‘enunciador’ lhe seria atribuído. (1997, p. 77). (grifos nossos)
...na ironia faz-se ouvir uma voz distinta daquela do locutor: nessa perspectiva, uma enunciação irônica põe em cena uma personagem que enuncia algo de deslocado e do qual o locutor se distancia por seu tom e sua mímica. Ele se coloca como uma espécie de imitador dessa personagem que se exprime de maneira incongruente...” (2001, p. 95). (grifos nossos)
 Concluímos que “o homem do 1003” é esse locutor L, a que Ducrot se refere, que apresenta a enunciação irônica como expressando a posição de um enunciador E (MAINGUENEAU, 2001, p. 95).
Outrossim, quanto ao fiador, temos a constituição de um caráter (sensato, compreensível, porém crítico ao distanciamento entre as pessoas) incorporado pelo coenunciador ao reconhecer o conflito inicial (desentendimento entre vizinhos), o que legitima os enunciados construídos pelo enunciador e constitui um corpo, que implicará na formação do ethos.
Destarte, no trecho seguinte da crônica, temos:
“Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nós agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua.”
Ressalta-nos aqui a formação de uma cenografia, que relaciona a localização do 903 ao interdiscurso da mitologia cristã. Neste caso não temos um “empilhamento de dezenas de números”, como o enunciador ironiza no primeiro trecho, mas sim, coordenadas geográficas que para levar à compreensão, o coenunciador precisa observar além da camada superficial do texto.
                                                 
                                                         
                                                         
1001: Oeste                                            1003
  
                                               leste: 1005
903 (Crucificado)
  
Notamos pela cenografia acima, constituída pela localização dos apartamentos, a intenção, por meio da proximidade, da comunhão e através da natureza não corrompida nas relações humanas, de ressuscitar aquele que está crucificado.
Mas, se por um lado a cena criada pelo enunciador remete ao texto sagrado, por outro lado na expressão seguinte: “Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nós agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua.”, retoma-se o tom de ironia. O léxico “apenas” intensifica o sentido de exclusão do 1003 em relação aos demais moradores, crítica evidente ao isolamento imposto pelo estilo de vida urbano.
É justamente esse tom polifônico da ironia que cria o estereótipo do antifiador. Segundo Maingueneau (1984/2005b),
Essa desqualificação da imagem do Outro pelo Mesmo pode ser depreendida quando o fiador do discurso agente cria, no interior de seu próprio discurso, o estereótipo de um antifiador, conferindo-lhe voz, que sendo apresentada em forma de simulacro, é ironizada e desqualificada pelo discurso citante...Também quando o fiador do discurso agente evoca indiretamente, por meio do ethos dito, o anti-ethos do discurso paciente, aquele que se encontra na posição de traduzido. (in http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7676)
Observamos, por meio dos recortes feitos até aqui, que o enunciador constitui de fato um antifiador, pois em nenhum momento o fiador parece fazer parte da realidade descrita, não existe identidade do fiador com a cena construída, tanto que a crítica vem em tom de ironia com o jogo dos números, o que permeia todo o discurso, exceto o final, em que, atipicamente ao gênero (enquanto recorte do cotidiano, dificilmente a crônica propõe um deslinde ao conflito), o enunciador propõe uma solução. Ainda, conforme Maingueneau (2011, p. 79) vimos presente o antifiador quando “desqualificado de maneira por assim dizer performativa pela enunciação que o apresenta”.
Percebemos a constituição desse antifiador, a que tanto exaltamos neste ponto, também no trecho que segue,
Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305.
O fiador ganha corporalidade e caráter à medida que, reconhecendo não se adequar a um cenário próprio, convence o coenunciador sobre a falta de intimidade entre vizinhos, pessoas próximas, que outrora, saberiam resolver seus conflitos por meio dos laços pessoais. Eis um fiador preocupado com questões humanas, de afetuosidade e comunhão.
Entretanto, esse mesmo trecho retoma o efeito irônico pelo excesso de números, e pelo paradoxo entre manter “um comportamento de manso lago azul” (metáfora para dizer que fará silêncio) e “quem vier à minha casa será convidado a se retirar às...” (continuar recebendo pessoas, que é a causa do barulho). Esse tom irônico também faz com que o coenunciador se surpreenda com o discurso, pois parece conduzi-lo a um sentido e bruscamente aponta para outro, oposto. Vimos com esse efeito, enquanto analistas, que na verdade se trata do discurso adversário, do anti-ethos, que busca desqualificar seu oponente.
Não queremos ser repetitivos, mas é interessante ressaltar que o discurso é inteiramente imbricado entre a enunciação do fiador, a quem descrevemos inicialmente, e este antifiador, imagem distorcida, inversa, que pelo tom polifônico da ironia desqualifica a imagem do “outro” (daquele que está preocupado com a não perturbação do silêncio, com a manutenção da ordem, e do espaço físico individual).
Em continuidade, no recorte abaixo, ressaltamos as qualidades do fiador:
Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio. (Grifos nossos)
Para Maingueneau: “(...) a qualidade do ethos remete a um fiador, que através desse ethos se proporciona uma identidade à medida do mundo que supostamente deve surgir”. (2001, p.143).
Reservados os tons irônicos presentes em todo o discurso até então, esse trecho finaliza a qualidade do fiador. Temos então o ethos apaziguador, de um sujeito preocupado em buscar a conciliação, por meio do resgate das relações humanas, da solidariedade e do comprometimento.
Os traços psicológicos desse sujeito também são corroborados pelo estilo da enunciação, basta observar os usos dos verbos de elocução, no presente do indicativo (que reforça a presença ativa do enunciador na instância narrativa), o que revela veracidade de algo ruim, “reconheço”, portanto há um respeito e arrependimento sincero e a função apelativa “peço-lhe”, o que aduz alguém que roga pela paz.
Reparamos, também, que o final da crônica é agora pautado por períodos longos, sem pensamentos fragmentados e apressados como visto no início,
 [...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Temos revelado o ethos do fiador, cuja ideologia é a religiosa. Além de apaziguar, o sujeito propõe resolver o problema junto ao vizinho, imaginando uma grande comunhão, tal como a da mitologia cristã, em que Jesus multiplicou e dividiu seu alimento e partilhou ensinamentos sobre o amor ao próximo e a paz entre os homens.
Existe uma predominância da tipologia exposição poética, que acrescido dos usos dos verbos no pretérito imperfeito do subjuntivo, “...em que um homem batesse à porta do outro...”; “E o outro respondesse”; “...E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus”,  remete-nos ao sonho ideal, a um desejo lírico (adjetivo), porém distante, de que as pessoas retomassem os mais nobres valores que permeavam as relações humanas.
Aliás, é a proximidade da crônica à literatura que permite ao enunciador evocar figuras de linguagem, como a metáfora (...“um comportamento de manso lago azul”...) e a prosopopeia (...“nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré”...“murmúrio da brisa nas árvores”...).
Por fim, não devem passar despercebidos os usos das aspas nos dois parágrafos finais, cujo objetivo é atribuir caráter de autoridade, veracidade e incontestabilidade, posto que evoca, através da intertextualidade, um texto sagrado para os cristãos. Reforça-se também pelos usos desse sinal tipográfico a representação da hipótese, de algo irreal.
Também é digna de observação a questão dos pronomes possessivos utilizados ao longo do texto. Percebemos que a princípio eles realmente indicam posse com relação às pessoas do discurso, mas no início (meu apartamento...sua veemente reclamação...me limito a Leste...ao meu número) parecem demarcar o espaço físico de cada morador, que não deve ser ultrapassado. Já ao final (Nossa vida...e coma de meu pão e bebe de meu vinho) estão empregados em um contexto de comunhão.
Os elementos da natureza também são relevantes (...maré...ventos...lua...manso lago azul...estrelas...árvores...), pois estão relacionados ao modo de vida que almeja o fiador, diverso do urbanizado. Podemos associar essa natureza à própria união entre os homens.
Isso posto, concluímos por nossa opção de análise e recortes do texto, que é por meio da constituição do fiador (em que o caráter, os traços psicológicos, saltam mais aos olhos) e do antifiador (estereótipo que ganha voz, se apresentando em forma de simulacro, mas que é ironizado e desqualificado pelo discurso citante) que determinamos a qualidade do ethos (sujeito apaziguador, de ideologia religiosa) e do anti-ethos (aquele que está preocupado com a não perturbação do silêncio, com a manutenção da ordem e do espaço físico individual), bem como, validamos a cena de enunciação (a cena englobante – literária – a cena genérica – crônica e a cenografia – cena de fala que o discurso pressupõe para ser enunciado, que retrata conflito entre vizinhos, e que válida a própria enunciação).
O discurso também é permeado pela “heterogeneidade mostrada”, em especial a ironia, que desqualifica o antifiador, e pela “heterogeneidade constitutiva”, relacionada à polêmica entre a formação discursiva religiosa e a política (ligada à legalidade).

6) Considerações Finais
Vimos, pela exposição das estratégias discursivas analisadas, a constituição de um ethos, por meio de um fiador, o qual nos revelou um mundo ético estruturado no centro urbano de uma grande cidade da década de 1950, retratando os conflitos típicos de uma sociedade individualista e materialista, por meio da discórdia entre moradores vizinhos de condomínio.
O texto é norteado pelo tom da ironia, cujo objetivo é constituir um antifiador, que em oposição ao ethos ideologicamente religioso, aduz um discurso pautado pela lei e a ordem. É esse discurso que nos permite também moldar o anti-ethos.
O coenunciador é envolvido à medida que o fiador desqualifica e ironiza o discurso atribuído ao antifiador, convencendo sobre a falta de diálogo e proximidade entre as pessoas que dividem o mesmo espaço nos grandes centros urbanos. O fiador também não se identifica com a cena construída, opõe-se todo o tempo ao regramento e distanciamento imposto com naturalidade pelos moradores do prédio.
Por fim, é o discurso pautado pela ideologia, que evoca o texto sagrado da mitologia cristã, que conduz o coenunciador a aderir ao fiador e reconhecer a desqualificação do antifiador.
Por outro lado, existe um evidente entrelace entre fiador, ethos, cenografia e heterogeneidade. Pois nenhuma dessas instâncias pode ser admitida em separado no discurso. Se o fiador atribui o caráter e o simulacro ao qual o destinatário anui, o ethos é esse corpo movendo-se por meio da enunciação e integrando a cenografia que valida a cena de fala e que ao mesmo tempo é validada.
Embora não seja objeto de nossa pesquisa, e nem tínhamos a intenção que fosse, a questão linguística também determina o percurso do discurso. Pois é pelas escolhas subjetivas, pelos sentidos semânticos do léxico e pelas figuras de linguagem, que atribuímos ao texto literário maior significação.
Difícil permitir que passassem desapercebidos, na análise desse texto, a seleção dos verbos (designando um sentido semântico único a ação que o enunciador desejou expressar) e os usos dos pronomes possessivos (que designam posse em relação às duas pessoas do discurso, “eu” e o “tu”, além da não pessoa  “ele” – por isso sua predominância, já que a todo o momento fala-se do espaço individual), além das metáforas e outras figuras de linguagem que atribuem um sentido poético.

7) Referências Bibliográficas
AMOSSY, Ruth. IMAGENS DE SI NO DISCURSO a construção do ethos. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
BRANDÃO, Helena Nagamini (2008) Discurso, gênero e cenografia enunciativa. In MICHELETTI, G. (org.) Enunciação e gêneros discursivos. São Paulo: Cortez Editora.
CANDIDO, Antônio et al. (orgs.) A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. 3ª edição. São Paulo: Contexto, 2012. Coordenação da tradução Fabiana Komesu.
MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. IN AMOSSY, Ruth. IMAGENS DE SI NO DISCURSO a construção do ethos. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
__________________________. Novas tendências da Análise do Discurso. 3ª edição. Campinas, São Paulo: Pontes/Ed. da UNICAMP, 1997.
__________________________. Elementos de linguística para o texto literário. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
__________________________. Cenas da Enunciação. Tradução e organização de Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola, 2008.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso. 5ª edição. Campinas: Pontes, 2003. (Coleção Princípios & Procedimentos).

Outras fontes de pesquisa:


Sobre antifiador, segundo Maingueneau: FERREIRA, Ilda. “Do Trabalho prescrito ao trabalho realizado: uma reflexão sobre as aulas de leitura”. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. PUC. São Paulo, 2008. Acesso em 17/05/2013.

Recado ao senhor 903

Vizinho –
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”. E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Rubem Braga