Literatura e
Cultura em Diálogo. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2003.
ANÁLISE DO
DISCURSO: UM ITINERÁRIO HISTÓRICO
Helena Hathsue
Nagamine Brandão – USP
Pretendo, neste
texto, reconstituir, de certa forma, o percurso da construção de uma tendência
de estudos da linguagem, a chamada Análise do Discurso de linha francesa (AD).
Surgida na década de 1960, sem dúvida, hoje, ela atingiu sua maturidade teórica
e metodológica e se consolidou como disciplina no cenário dos estudos da
linguagem, deslocando-se, por assim dizer, da periferia para o centro.
É do
conhecimento de todos que a lingüística viveu, na primeira metade do século
passado, um período eufórico em que exerceu o papel de ciência piloto das
ciências humanas, fornecendo a partir do modelo fonológico, uma espécie de passaporte
para as ciências humanas. Entretanto, fechada no cânone estruturalista e
determinada pelos padrões cartesianos, as grandes opções saussurianas foram colocadas
em questão, revendo-se aquilo que havia sido posto de lado, especialmente o que
se considerou como pertencente ao “domínio da fala”. A inquietação estava na
necessidade que se sentia em reintroduzir a questão do histórico. Lembremos que
as grandes dicotomias estabelecidas por Saussure tinham um caráter construído.
Elas serviram para separar as noções de “fala” e “diacronia” para construir e
eleger como objeto da ciência lingüística, duas outras, as de “língua” e “sincronia”.
Buscando,
sobretudo, delimitar rigorosamente o campo da ciência sincrônica da língua,
para Saussure, os termos complementares de seus conceitos de base (diacronia,
fala) pertenceriam a um outro campo científico, formalizável por uma outra
ciência ou outro ramo da lingüística cuja exploração devia ser provisoriamente
suspensa. Com isso, definia dois objetos científicos distintos, o de uma “lingüística
da língua” que ele passa a examinar e o de uma “lingüística da fala” que ficava
para ser explorada.
Embora reconheça
que língua e fala sejam recortes diferentes do mesmo objeto, ele opta pelo
campo da língua porque categorizável, sistematizável, 2 enquanto a fala,
situada no nível da concretude, não. O que está por trás dessa postura é uma
opção por uma teoria lingüística fundada numa visão organicista da língua
determinada por um enraizamento ideológico próprio ao cartesianismo vigente.
Nesse modelo, a
atividade “criadora” do sujeito individual, livre, é colocada como anterior à
da linguagem e modificar o sistema equilibrado e estável da língua é
inconcebível; excluindo-se, assim, os conceitos de fala e diacronia, exclui-se
do âmbito da linguagem o conceito de linguagem enquanto trabalho produzido por
sujeitos falantes.
Os estudos
lingüísticos foram, dessa forma, durante bom tempo balizados pela problemática
colocada pela oposição língua/fala que impôs uma linguística da língua. Logo se
reconheceu, entretanto, que uma lingüística imanente que se limitava ao estudo
interno da língua não dava conta do seu objeto. O reconhecimento de uma
dualidade constitutiva da linguagem, isto é, do seu caráter ao mesmo tempo
formal e atravessado por entradas subjetivas, sociais e históricas provoca um
deslocamento nos estudos lingüísticos. Estudiosos passam a buscar uma compreensão
do fenômeno da linguagem não mais centrada apenas na língua, sistema
ideologicamente neutro, mas num nível também situado fora do estritamente linguístico
Tentativas de
elaboração de uma teoria do discurso
A maior parte
dos procedimentos para elaborar uma teoria que superasse esse impasse
permanecia presa a uma referência à dicotomia língua/fala acreditando que a
problemática pudesse ser resolvida deslocando a questão para o pólo da fala. As
várias tentativas iniciais de elaboração de uma teoria do discurso sofriam da
ausência de definição de seu objeto, resultante de uma referência implícita ou
explícita aos termos fala e diacronia.
1. O modelo
harrisiano
O ano de 1952 é
considerado importante para a história da análise do discurso, pois é publicada
a obra de Harris sob o título Análise do Discurso. A análise dos
enunciados, sob a forma harrisiana, se apresenta como uma tentativa para
elaborar um procedimento formal de análise dos segmentos superiores à 3 frase,
permitindo levar em conta relações transfrásticas que podem ser observadas nos “textos”.
Propõe-se aplicar o método da análise distribucional praticado pela lingüística
descritiva ao nível da frase. Embora a obra de Harris possa ser considerada o
marco inicial da análise do discurso, ela se coloca ainda como simples extensão
da lingüística. O procedimento analítico não visava a buscar o sentido do
texto, excluindo qualquer reflexão sobre a significação e as considerações
sócio-históricas de produção, que vão distinguir e marcar posteriormente a
Análise do Discurso de orientação francesa.
2. O modelo da
teoria da enunciação
A noção de
enunciação constitui a tentativa mais importante para ultrapassar os limites da
lingüística da língua, permitindo elaborar um conceito que possibilitasse
colocar em relação língua e fala. O domínio dos “dêiticos” parecia, com efeito,
situar-se na intersecção do “código” e do “ato” de fala.
Bally (1951) faz
uma primeira formulação do problema da enunciação, tendo sido Jakobson (1963) e
Benveniste (1966,1974) os pioneiros das pesquisas nesse domínio; apesar das
diferenças de abordagem, seus trabalhos convergem ao colocarem em evidência uma
classe de unidades da língua que se definem por suas propriedades funcionais no
discurso: os embreantes (shifters) para Jakobson ou elementos indiciais ou
dêiticos para Benveniste. Mostram “a particularidade desses elementos que é o
de remeter à “instância do discurso” em que são produzidos, constituindo no
enunciado pontos de emergência do sujeito da enunciação. Esta descoberta funda
a oposição enunciado/enunciação e abre uma perspectiva nova à análise do texto:
este não manifesta apenas o funcionamento da língua como ‘repertório de signos
e sistema de suas combinações’, mas remete para a ‘linguagem assumida como
exercício pelo indivíduo’” (Robin et alii,1972).
Para Benveniste
(1966,1974), o que transforma a língua em discurso é o ato de enunciação – ato
pelo qual o sujeito falante se apropria do aparelho formal da língua. Todo ato
de enunciação supõe, portanto, um trabalho individual de conversão da língua em
discurso por um processo de apropriação.4
Nesse processo
de apropriação, a categoria dos dêiticos, os pronomes pessoais ocupam um lugar
privilegiado, pois será por meio deles que se dará conta da presença do sujeito
na linguagem e no mundo. Para Benveniste (1966), “a linguagem só é possível
porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo
como eu no seu discurso”. Portanto, o eu do código está disponível
a todos e falar é apropriar-se dele, é organizar o discurso em torno do eu/aqui/agora,
e o mundo ao redor dessas coordenadas. O tu, embora figura necessária e
complementar, não é igual nem simétrico ao eu, que lhe é transcendente e do
qual é apenas eco. A designação dêitica torna-se, assim, o primeiro
ponto de ancoragem do sujeito e permite dar um primeiro sentido à noção de
subjetividade. Em Benveniste, no entanto, o sistema dos pronomes pessoais,
central para ele, se constitui pela exclusão da terceira pessoa colocada como
não pessoa.
“A relação
lingüística fundamental permanece dual, aquela que opõe um ‘eu’ a um ‘tu’.
Mesmo quando ele afirma que ‘é na e pela linguagem que o homem se constitui
como sujeito’ a relação parece ser a que é instituída pela ‘polaridade das
pessoas’. O diálogo se reduz ao duo e a dialética não liga senão dois termos.
Nenhum lugar parece feito aqui para a dimensão social do fenômeno lingüístico”
(Kuentz, 1972, p.27).
Aliás, a
dimensão social aparece como derivada de sua dimensão subjetiva. Basta ser dois
para falar e a questão do social se desdobra a partir desse par fundamental,
constituído pelas duas “pessoas”, anteriores a toda prática lingüística.
Pode-se dizer
que todas essas tentativas de superação de uma linguística restrita à língua
não atingiram seu objetivo, a constituição de um objeto realmente novo, o
discurso, porque continuaram ainda presas à dicotomia saussuriana, assimilando
a questão do discursivo à fala, com exclusão da história, concebendo o sujeito
de forma idealizada, na sua unicidade e homogeneidade, como fonte criadora,
origem do sentido, sentido entendido como transparência.5
A construção de
uma análise do discurso
Para Maldidier,
a emergência da disciplina que mais tarde passa a ser denominada Análise do Discurso
de linha francesa tem uma dupla fundação, centrada na atuação de Jean Dubois e
Michel Pêcheux. “Os anos 60 são os anos do estruturalismo triunfante. A
lingüística, promovida a ciência piloto, está no centro do dispositivo das
ciências (...)
O projeto da AD
nasce neste contexto (...) o liame entre a expansão da lingüística e a
possibilidade de uma disciplina (nova) como a análise de discurso é explícita”
( Maldidier, 1994,p.175).
Na conjuntura
teórica da França dos anos 1968-70, em um momento em que emerge o sentimento
dos limites e do relativo esgotamento do estruturalismo, nasce a AD, presidida
pela lingüística e pelo marxismo, tendo inscrito no seu projeto um objetivo
político: usar “a arma científica da lingüística como um novo meio para abordar
a política” (Maldidier, 1994, p.175). Lembremo-nos dos acontecimentos políticos
ocorridos em maio de 1968, em que as indagações e perplexidade diante dos fatos
e dos discursos então produzidos fazem surgir um sentimento de urgência teórica
e política que vai buscar na Análise do Discurso um modo de leitura para a
interpretação desses eventos.
Apesar da
diferença de formação e exercício profissional, Dubois (linguista, lexicólogo,
já consagrado na época) e Pêcheux (filósofo, situando-se no campo da história
das ciências, influenciado mais tarde pelas idéias de Foucault) atuam em um
espaço comum: o do marxismo e da política.
Há, no entanto,
diferenças fundamentais entre eles (Maldidier, 1994, p.176). Segundo Maldidier,
em Dubois, “a AD é pensada num continuum: a passagem do estudo das palavras
(lexicologia) ao estudo do enunciado (análise de discurso) é ‘natural’, é uma
extensão, um progresso permitido pela lingüística”. Em Pêcheux, ao contrário, a
análise de discurso é pensada como uma ruptura epistemológica em relação ao que
se fazia nas ciências humanas, articulando a questão do discurso com as do
sujeito e da ideologia.6
Tanto um como
outro, apesar das divergências, instituem uma disciplina nova que tentava pensar
sua autonomia recusando quer uma relação de aplicação (da lingüística a um
outro domínio, como a antropologia, a história, as ciências sociais) quer uma
integração pura e simples à linguistica. Em ambos havia a preocupação em pensar
o objeto discurso e ao mesmo tempo os instrumentos para sua análise. Para
Maldidier (1994, p.176) os estudos de Dubois, entretanto, tenderam para
questões mais enunciativas em que a noção do sujeito falante ficou presa a uma
problemática psicologizante. Em Pêcheux (1990a), encontra-se a teorização de um
objeto novo cujos procedimentos, que permitiam apreendê-lo, colocam em relação
um dado estado das condições de produção e processos de produção do discurso.
Define o discurso como sempre determinado e tomado em uma relação com a
história.
Contrapondo-se a
uma filosofia idealista da linguagem atravessada pela “evidência da existência
espontânea do sujeito como fonte, origem ou causa em si” e pela transparência
do sentido, para Pêcheux (1988), o sujeito não é um dado a priori, mas é
constituído no discurso. Sentido e sujeito se constituem num processo
simultâneo através da figura da interpelação ideológica, conceito que empresta
de Althusser (1974, p.104). Pêcheux (1988, p. 160) afirma que o “sentido de uma
palavra, expressão, proposição, não existe em si mesmo (isto é, em sua
relação transparente com a literalidade do significante), mas é determinado
pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo-sócio-histórico em que
palavras, expressões, proposições são produzidas”.
Assim, a noção
de sujeito em Pêcheux, é determinada pela posição, pelo lugar de onde se fala.
E ele fala do interior de uma formação discursiva (FD), regulada por uma
formação ideológica (FI). E isso o leva a conceber uma subjetividade assujeitada
às coerções da FD e da FI. Portanto, um sujeito marcado por uma forte dimensão
social, histórica, que na linguagem é balizada pela FD que define “o que pode e
deve ser dito por um sujeito”.
Nos fins dos
anos 70 esta AD da primeira fase estava de certa forma consolidada nos
trabalhos de pesquisa, em estudos concretos que lhe conferiam 7 realidade.
Situando-se num campo polêmico pelos deslocamentos que provoca, ela foi logo
objeto de críticas tanto da parte dos próprios analistas do discurso quanto dos
linguistas e de pesquisadores estranhos ao campo da lingüística.
A AD tentou
construir um objeto, buscando ao mesmo tempo instrumentos operatórios para
trabalhá-lo, mas ao fazer isso, paradoxalmente, a AD, de alguma forma, repetiu
em sua constituição as condições que presidiram a fundação saussuriana do
objeto da lingüística. Isto é, da mesma forma que, na lingüística da língua, a
homogeneidade da língua assegurava a regulação das exclusões e as rejeições
para fora do objeto, o conceito de FD , tal como foi concebido nessa fase, como
espaço estrutural fechado, reproduziu o fechamento do corpo discursivo com a
homogeneização do corpus.
Assim, depois de
1975, AD passa a uma segunda fase em que, a partir dessas construções do
momento inicial, objetos de críticas pertinentes, se dão desconstruções e
reconfigurações provocadas pelas transformações da conjuntura teórica e
política que acontecem na França.
“No campo da
lingüística, é a chegada tardia mas massiva, da pragmática, da filosofia da
linguagem, da análise da conversação, é a crise das lingüísticas formais e o
sucesso da lingüística da enunciação, a recepção de Bakhtin-Volochinov. Essa
agitação traz referências novas, abre possibilidades de recursos, favorece a
emergência de objetos novos. (Maldidier, 1994, p.181)
Pêcheux não fica
imune a esse processo de reconfiguração. Reformula sua noção de FD ao
reconhecer que uma FD não é um espaço estrutural fechado, pois está em relação
paradoxal com seu “exterior” ao ser constitutivamente “invadida por elementos
que vêm de outro lugar ( isto é, de outras FDs) que se repetem nela, sob a
forma de pré-construído e de discursos transversos”(Pêcheux,1990b, p.314).
Surge então a noção de interdiscursividade para designar o “exterior específico”
que irrompe no interior de uma FD. Ao se colocar a relação da FD com um além
exterior e anterior, vê-se obrigado a reconhecer como elementos importantes a
serem considerados na análise de uma FD 8 “os pontos de confronto polêmico que
se trava nas suas fronteiras internas, as zonas atravessadas por toda uma série
de efeitos discursivos tematizados como efeitos de ambigüidade ideológica, de
divisão, de réplicas estratégicas”(Pêcheux, 1990b,p.314).
O sujeito do
discurso concebido, de início, como puro efeito de assujeitamento ao
dispositivo da FD com o qual se identifica, vai sendo também contaminado por
essa preocupação nova (o exterior como constitutivo do interior discursivo) que
leva ao questionamento da própria concepção original da FD e ao reconhecimento
do discurso como um objeto heterogêneo. Sob o primado teórico do outro sobre o
mesmo, procura-se tematizar as formas lingüístico-discursivas do discurso outro
e da identidade discursiva.
Posteriormente,
a recepção das idéias de Bakhtin (1979) no Ocidente, primeiro pela via da
literatura, se faz sentir também na Análise do discurso pela dimensão
sócio-interacionista da sua concepção de linguagem. Concepção que está
assentada no princípio de que toda palavra é dialógica por natureza,
porque pressupõe sempre o outro; o outro sob a figura do destinatário a quem
está voltada toda alocução, a quem se ajusta a fala, de quem se antecipam
reações e se mobilizam estratégias. Mas, na concepção bakhtiniana, o outro é
ainda o outro discurso ou os outros discursos que atravessam toda fala numa
relação interdiscursiva.
Concebe-se a
linguagem como forma de interação social em que o outro vai desempenhar um
papel fundamental na constituição do significado e insere todo ato de
enunciação individual num contexto mais amplo, revelando as relações
intrínsecas entre o lingüístico e o social.
Nesse quadro
teórico discursivo, em que o ato de enunciação é uma forma de interação social,
como fica a questão do sujeito? Nesse quadro só se pode conceber um sujeito
social, histórica e ideologicamente situado, que se constitui na interação com
o outro. Eu sou eu na medida em que interajo com o outro. É o outro que dá a
medida do que eu sou. A identidade se constrói nessa relação dinâmica com a
alteridade.
O texto encena,
dramatiza essa relação. Nele, o sujeito divide seu espaço com o outro porque
nenhum discurso provém de um sujeito adâmico que, num 9 gesto inaugural, emerge
a cada vez que fala/escreve como fonte única do seu dizer. Segundo essa
perspectiva, o conceito de subjetividade se desloca para um sujeito que se
cinde porque átomo, partícula de um corpo histórico-social no qual interage com
outros discursos de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou é
posicionado) para construir sua fala.
Articulada ao
princípio dialógico e a essa noção de sujeito, temos uma outra noção
fundamental na teoria bakhtiniana de linguagem: a noção de polifonia;
determinado social e historicamente, todo texto trabalha a linguagem de forma a
criar maior ou menor efeito polifônico. É nesse sentido que se tem disseminada
a metáfora de que o texto se transforma em uma arena de lutas em que vozes,
situadas em diferentes posições, emergem, polifonicamente, numa relação de
aliança, de oposição ou de polêmica.
Numa outra
relação interdisciplinar, a Análise do discurso tem, atualmente, se valido de
conceitos desenvolvidos pela linguista J. Authier- Revuz. Influenciada pela
concepção polifônica da linguagem de Bakhtin e pela psicanálise, J. Authier
(1982), tem feito seus estudos a partir da noção de que a linguagem é
constitutivamente heterogênea, isto é, faz parte da própria natureza da
linguagem o ser heterogênea. O discurso produzido por um sujeito cindido pelas
várias perspectivas que assume dentro de um mesmo texto é também marcado por
essa cisão, pela plurivalência e pela pluripresença da palavra. Podemos ver a
manifestação dessa heterogeneidade na própria superfície discursiva através da
materialidade lingüística do texto em que formas marcadas acusam a presença do
outro, tais como: as formas do discurso relatado (discurso direto, indireto);
as formas pelas quais o locutor inscreve no seu discurso, sem que haja
interrupção do fio discursivo, as palavras do outro, indicando-as quer através
das aspas, do itálico, de uma entonação específica, quer através de um comentário,
de um ajustamento ou de uma remissão a um outro discurso; ao lado dessas formas
marcadas, encontram-se formas mais complexas em que a presença do outro não é
explicitada por marcas unívocas na frase. É o caso do discurso indireto livre,
da ironia, da alusão, da pressuposição, da imitação, da reminiscência em que se
joga com o outro discurso não mais no nível da transparência, do explicitamente
mostrado ou dito, mas no espaço do implícito, do semidesvelado, do sugerido.
Aqui não há uma fronteira lingüística nítida entre 10 a fala do locutor e a do
outro, as vozes se misturam nos limites de uma única construção lingüística.
Como vimos, no interior
da própria Análise do Discurso, houve um profundo deslocamento teórico e
metodológico em relação ao objeto discurso: de uma concepção de discurso
circunscrita à noção estrutural, homogeneizante de uma FD, que determina “o que
pode e deve ser dito” e dominada por uma FI, passa-se para uma concepção de
linguagem enquanto diálogo e de discurso enquanto espaço de heterogeneidade, de
interação intersubjetiva e interdiscursiva, de negociação, confronto, polêmica
entre o um e o outro.
Consequentemente,
esse deslocamento passa a afetar a questão do sujeito, noção fundamental para a
Análise do Discurso: concebido como histórica e socialmente determinado, do
sujeito assujeitado a uma formação discursiva, passa-se à noção de um sujeito
que trabalha a linguagem e se constitui nesse processo, assumindo diferentes
posições enunciativas e ideológicas quer com elas se aliando quer com elas se
confrontando. E como sujeito histórico, opera nele uma memória discursiva, que
é assim definida por Pêcheux (1999, p.52): “a memória discursiva seria aquilo
que, face a um texto, que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’
( quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos-transversos, etc.)”.
Trata-se,
portanto, de um restabelecimento necessário e fundamental à leitura do texto e
que constitui a condição da sua legibilidade.
Hoje, em relação
ao campo da AD francesa, tem se verificado uma intensa difusão da sua prática;
prática que se vê influenciada pela emergência das diferentes tendências de
abordagem do fato lingüístico como a pragmática, a teoria da enunciação, a
lingüistica textual. Influência que não vejo como negativa, pois compreensível
na própria agenda programática da AD, na medida em que operando com conceitos
como heterogeneidade, alteridade, o outro no mesmo, ela não pode se furtar ao
diálogo interdisciplinar sem perder, entretanto, o rosto, a identidade, pois
uma disciplina que preza a historicidade, não pode se deixar congelar por
qualquer tipo de imobilismo ou fixidez.
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