O HOMEM EM SEU ESTADO NATURAL
O Paradoxo entre o estado racional
e natutalista de Aluísio Azevedo e o animalesco – Sagrado e Profano - de Miguel Torga.
Com relação às obras que este artigo pretende, sob a análise literária,
se aprofundar, Bichos (Miguel Torga)
e o Cortiço (Aluísio Azevedo), necessário
se faz sua apresentação ao nobre leitor.
O Cortiço, sob nossa ótica é um romance que difunde as teses
naturalistas tendo como fundo o cenário decadente da habitação coletiva, na
cidade do Rio de Janeiro. Interessante notar que o romance pode ser considerado
uma alegoria do Brasil à época de seu lançamento (1890) sendo, por alguns
estudiosos, considerado peça-chave para que se entenda o período histórico,
sem, no entanto, prestar-se a ser um relato histórico propriamente dito, é fiel
ao relato das relações sociais existentes, representadas pelo autor de modo
fictício em seu romance.
Há que se considerar que “O
Cortiço” tem como influência L’Assommoir, de Émile Zola, cujo enredo
centra-se na história da difícil vida nos bairros pobres de Paris na década de
1860. Além disso, a narrativa discute também as mazelas provocadas pelo
alcoolismo. A personagem central, Gervaise Lantier, compra uma pequena, porém
lucrativa, lavanderia na capital francesa. Inicialmente a protagonista consegue
sucesso nos negócios, mas devido à combinação de relacionamentos fracassados
com a má sorte mais a sua própria preguiça e o vício na bebida, a lavanderia
vai à bancarrota. Por isso, Gervaise cai numa grande miséria e sordidez. Assim
como descrito em “O Cortiço”, de Aluízio Azevedo, em relação ao Brasil, na obra
de Émile Zola o escritor se esforça para explorar os vários aspectos
(políticos, econômicos e sociais) da vida na França durante o Império de
Napoleão III.
A intenção naturalista era fazer uma crítica contundente e coerente de
uma realidade corrompida. Zola e, neste caso, Aluísio combatem, como princípio
teórico, a degradação causada pela mistura de raças. Por isso, os dois romances
naturalistas são constituídos de espaços nos quais convivem desvalidos de
várias etnias. Esses espaços se tornam parte do romance.
O Cortiço, sob certos pontos de vista é mesmo um organismo vivo,
superior até mesmo aos personagens que ali vivem. Observemos assim trecho da
obra onde isso nos parece bem claro:
“E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de
gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal
de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da
casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que
serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela,
rachando o solo e abalando tudo.”
Nota-se que o Cortiço é ora comparado à
uma floresta cujas raízes eram serpentes, e comparado à mitologia
judaico-cristã à cerca do animal, não há nada de positivo à se esperar de
serpentes rastejando-se no subsolo.
Importante observar também nesta obra a proximidade entre exploradores e
explorados, a sordidez existente em todas as relações sociais, seja na luta
brutal de João Romão rumo ao enriquecimento, seja nas relações entre os
personagens desvalidos. Podemos observar que há uma redução do ser humano ao
estado, bestial, de pura selvageria, onde os predadores caçam e devoram suas
presas. Nessa selva, todas as vilanias e torpezas são justificáveis aos
“pobres”, pois necessitam sobreviver.
A separação das raças fica clara com a presença do comerciante Miranda,
que é a representação da burguesia, que “derrota” João Romão quando a
“intervenção divina” da família real o contempla com um título de nobreza, numa
clara alusão ao caráter “divino” atribuído ao rei, diferente das “bestas-feras”
de classes inferiores, que lutam pela sobrevivência na floresta malévola
representada pelo cortiço. Sob este prisma, apenas a aproximação da divindade,
(o rei), pela observância das leis divinas (ascensão social), pelos seus
emissários (nobres) é que se pode tirar o homem de seu estado natural, bestial.
Então, para deixar a
selva, ou o inferno, um pecado “menor” (a traição) seria plenamente
justificável, vista a redenção vindoura (o casamento com a filha de um barão).
Neste ponto, o destino que João reservou, ao acaso, para Bertoza, seria
o rompimento entre a mistura de classe, a “união” que antes acontecia quando os
dois eram amantes, repudiada pelo naturalismo.
Na crítica social, a massa de manobra, o gado, os animais só servem à
exploração, quando não mais podem ser explorados, não tem serventia e devem
então ser “sacrificados”.
Outro ponto que devemos observar é que o clima é tido como corruptor até
mesmo do mais honesto dos homens, a exemplo disto observamos Jerônimo, que de
trabalhador, se transforma no verdadeiro “malandro carioca”.
Os romances naturalistas, além do rigor científico, busca compor um
relato, um registro implacável da realidade. Os romances naturalistas
destacam-se pela abordagem extremamente aberta do sexo e pelo uso da linguagem
falada. O resultado é um diálogo vivo e extraordinariamente verdadeiro, que na
época foi considerado até chocante de tão inovador. Ao ler uma obra
naturalista, tem-se a impressão de se estar a ler uma obra contemporânea, que
acabou de ser escrita. Os naturalistas acreditavam que o indivíduo é um mero
produto da hereditariedade e o seu comportamento é fruto do meio em que vive e
sobre o qual age. A teoria de Dawin inspirava os naturalistas, que acreditavam
ser a Seleção natural impulsionadora da transformação das espécies. Assim, predomina nesse tipo de romance o
instinto, o fisiológico e o natural, retratando a agressividade, a violência, o
erotismo como elementos que compõem a personalidade humana.
1. Os organismos vivos tem grande capacidade de reprodução. Apesar disso,
já que o suprimento alimentar é reduzido, poucos indivíduos chegam à idade de
procriação. Disso decorre que os organismos com as mesmas exigências
alimentares competem entre si, "lutando" constantemente pela existência.
2. Os organismos apresentam variações hereditárias e, portanto,
transmissíveis. Algumas variações são mais favoráveis à existência do que
outras, num determinado ambiente. Disso decorre que os organismos com as
variações mais favoráveis num determinado ambiente estarão mais capacitados a
sobreviver e a se reproduzir nele do que os que possuem variações
desfavoráveis.
Darwin partiu da observação segundo a qual, dentro de uma espécie, os
indivíduos diferem uns dos outros. Há, portanto, na luta pela existência, uma
competição entre indivíduos de capacidades diversas. Os mais bem adaptados são
os que deixam maior número de descendentes.
Ao lado de Darwin, Hippolyte Taine e Auguste Comte influenciaram de modo
definitivo a estética naturalista. Os autores naturalistas criavam narradores oniscientes
e impassíveis para dar apoio à teoria na qual acreditavam, exploravam temas
como a homossexualidade, o incesto, o desequilíbrio que leva à loucura, criando
personagens que eram dominados pelos seus instintos e desejos, pois viam no
comportamento do ser humano traços da sua natureza animal.
O homem tem dois impulsos principais: sexualidade e agressão, juntos com
motivos determinados pelo meio ambiente, tais como os conflitos de Édipo e de
castração, que exigem expressão. A hostilidade humana, ao que tudo indica, não
tem limites: o homem é hostil não só a sociedade como também a seus
companheiros mais próximos. Aluísio se propõe a mostrar que a mistura de raças
em um mesmo meio desemboca na promiscuidade sexual, moral e na completa
degradação humana. Freud afirma que “..A sociedade civilizada está
perpetuamente ameaçada pela desintegração por causa dessa hostilidade primária
dos homens entre si... A cultura tem de recorrer a todo reforço possível a fim
de erigir barreiras contra o instinto agressivo dos homens...” A
hostilidade primária humana só encontra barreira, pela coerção social, que
metaforicamente, sob nossa ótica é representada pela figura”divina” do rei, e
pela sua proximidade (o título de nobreza).
Com esta breve análise, passamos então a observar os aspectos relevantes
a analisarmos na obra “Bichos” de Miguel Torga:
Miguel Torga é apenas um pseudônimo, sendo, o verdadeiro nome do autor:
Adolfo Correia da Rocha. Este nasceu na região de Trás-os-Montes e viveu cinco
anos no Brasil. Miguel Torga tentou poetizar em grupo, com as revistas “Sinal”
e “Manifesto”, acabando por desistir, pois considerava que a poesia era algo
demasiado sublime e que exigia o máximo de pureza e fidelidade pessoal em
relação ao poeta. pseudônimo "Miguel" e "Torga". Miguel, em
homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e
Miguel de Unamuno. Torga é uma planta brava da montanha, que tem raízes fortes
sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule
incrivelmente retilíneo. Torga sofria de câncer vindo à falecer em 1995.
Em sua obra “Bichos”, que é um livro de contos, cada conto refere-se à
seres diferentes do reino animal. Nesses contos, Torga apresenta homens e
animais, sem distinção, “unidos” pelos mesmos instintos primários de
sobrevivência, atribuindo a estes sentimentos humanos e retirando àqueles
solidariedade. Todos assim sob a mesma batuta: bichos. Apenas em “Jesus”
poderemos encontrar o que consubstancia a essência humana: a noção de
felicidade, o amor, a ternura, o encantamento, a ingenuidade, a pureza, o
respeito.
Novamente, encaramos o que foi exposto na análise anterior, que o ser
humano, enquanto naturalmente humano, é um ser animalesco, bestial, um “bicho”
como outro qualquer, ou melhor, um “bicho” mais feroz e cruel que os demais,
pois é dotado de julgamento e inteligência. Somente na presença do “divino”, o
ser humano é um ser “moralmente aceitável”. Novamente, temos o papel não
espitirualista, mas coercitivo da religião, imposta pela sociedade, por isso
mesmo, o nome do menino ser Jesus, que nos ensina, todos os valores benéficos
ao homem
Numa entrevista concedida em 1926 Freud teria dito que prefere a
companhia dos animais à humana, ”...Porque são tão mais simples. Não sofrem
de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da
tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados
para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é
cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do
homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis
características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma
civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e
nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um
cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do
cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez
seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de
heróis antigos como Aquiles e Heitor."
Não por acaso, acreditamos, que o autor dá o nome de ”Nero” à um cão,
como Freud acaba de citar.
Sendo Torga um Humanista, o que obras tão antagônicas quanto “Bichos” e
Azevedo um Naturalista, o que tais obras teriam em comum?
Primeiramente, a narrativa: Em ambas as obras os autores permanecem
“oniscientes” narrando a obra em terceira pessoa, impassíveis ao fatos que
narram.
Há que se observar também o período histórico vivido por Portugal ao
lançamento da obra. Portugal passava pelo regime do Estado Novo, que foi a implementação
da ditadura naquele país, em meados dos anos 30.
Bichos é, também, o retrato fiel do viver transmontano; uma vida de suor
e lágrimas, por entre escolhas e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que
só o sofrimento pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total
com a natureza, em fusão permanente com os elementos.
Miguel Torga fez desta obra um testemunho da união natural entre os
Homens e os Bichos – a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que
lhes dá vida. No trabalho, nas paixões e nas dores, os bichos compartilham com
os homens as esperanças e as desgraças.
Uma observação quanto à palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são,
talvez, os animais humanizados, irmanados com o homem na mesma luta. A luta
pela vida.
A rudeza das torgas, a aspereza das montanhas, a magreza das terras e a
solidão do tempo, misturam-se num universo, cantado em poesia por um homem que
viveu e lutou contra um mundo ainda mais agreste, ainda mais hostil: o mundo da
ditadura, o mundo do Estado novo Português.
Finalmente, se observarmos bem atentamente a ambas as obras podemos
notar um denominador comum: O homem relegado à posição de animal, seja ela
dócil ou selvagem.
Sob esta observação podemos considerar a obra “Bichos” como uma obra que
tem forte cunho naturalista, visto que homens e animais não são diferentes, mas
semelhantes, resultado de evolução, o que Já foi citado pelas teorias tanto de
Darwin em seu aspecto fisiológico quanto Freud, pelos aspectos mentais.
Ambas as obras “desconstroem” a figura humana, reduzindo-as, como fruto
do meio, aos seus instintos mais básicos: Alimentação, sexualidade, enfim,
sobrevivência, em conflito com os rigores da coerção social representada em “O
Cortiço” pela ”divina” nobreza, seja em “Bichos” representada pelo que os
“homens” esperam que seja o comportamento útil de seus “bichos”, sendo que os
seres “divinos” são representados, na obra “bichos” pelo “Menino Jesus”.
A Conclusão que chegamos é que as obras demonstram o homem em seu meio
natural, de modo metafórico sendo porém ambas, contundentes em revelar verdades
e críticas sociais, ou o modo de vida sob regimes opressores, seja num império
ou em uma ditadura. Assim sendo, o homem, deixa de ser livre pensador, de
existir, sendo apenas animal selvagem e depois um “bicho” domesticado e servil,
sendo o bicho “humanizado” na obra de Torga e o homem “desumanizado” na obra de
Azevedo.
O Homem, afinal, é,
na questão de sua sobrevivência, um fruto de seu meio, portanto, natural, que
cede aos seus instintos básicos, o que é amplamente demonstrado em ambas as
obras.
BIBLIOGRAFIA:
- AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ciranda
cultural, 2007. V1.
BOSI, Alfredo. “Aluísio Azevedo e os principais
naturalistas”. História concisa da literatura brasileira. 41º
ed. São Paulo: Cutrix, 2006, P.187 - 194.
- TORGA,
M. Bichos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
-
FRANCISCO
MACIEL SILVEIRA & LENIA MARCIA DE MEDEIROS MONGELLI & MARIA HELENA
RIBEIRO DA CUNHA & MASS. “Literatura portuguesa em perspectiva”. 1º Ed. São
Paulo. Editora Atlas, 1994.
Sites:
- Obra Parcial. T, Michel. Bichos:
- Massaud Moisés - A criação
literária - prosa (rtf):
http://pt.scribd.com/doc/458324/Massaud-Moises-A-criacao-literaria-prosa-rtf?query=Bicho
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