Estranho perceber como, a princípio, dez páginas representam um
problema de excesso de espaço, afinal, você não possui bagagem teórica e
experiências suficientes para preenchê-las. Entretanto, com o transcorrer do
semestre, essas mesmas dez páginas se tornam um problema ainda maior, agora,
pela limitação e falta de espaço. Como podem limitar seu artigo a, miseras, dez
páginas?
_____________________
A
CONSTRUÇÃO DO FIADOR: Relação de Interdependência dos Conceitos de Ethos e
Cenografia na Crônica “Recado ao Senhor 903”, de Rubem Braga.
Aluna: Luci
Cleide Cardoso
Universidade
Cruzeiro do Sul
1. Considerações Iniciais
A crônica “Recado ao Senhor 903”, de Rubem Braga, é parte do livro “A Cidade e a Roça”, lançado em 1957, e relançado
com o título “O Verão e as Mulheres”,
reunindo 32 (trinta
e duas)
crônicas publicadas entre 1953 e 1955, o texto está entre aqueles que abordam
questões sociais mais relevantes.
O autor narra vários eventos,
aparentemente corriqueiros, que ganham nova dimensão e relevância graças ao seu
discurso, estilo e subjetividade. Há, na verdade, uma crítica às relações
desumanizadas nas grandes cidades, em que pessoas são tratadas apenas como
números. O que nos surpreende, ao final, é o convite à comunhão, no lugar da
intolerância.
O objetivo desta pesquisa é analisar, através
de conceitos da Análise do Discurso,
de linha francesa, a construção do enunciado por meio do tom e dinâmica
corporal atribuída ao fiador.
Investigamos também, como essa dinâmica envolve o coenunciador, que captado
pelo ethos e envolvido pela cenografia, torna-se adepto ao discurso do
enunciado.
O discurso é muito mais do que
argumentar e persuadir. Seu enunciado deve conferir-lhe corporalidade (fiador).
O leitor deve incorporar e aderir a esquemas que correspondem a estereótipos (a sua própria maneira de
inscrever-se no mundo) e tais incorporações é que permitirão
a adesão ao discurso.
Destacamos,
quanto aos pressupostos teóricos de análise, que adotamos em especial aqueles
trazidos por Dominique Maingueneau (1997).
A
crônica apresentada, como típico do gênero, extrai elementos da realidade e
propõe uma releitura, todavia existem peculiaridades que a tornam atemporal (diverso da crônica de jornal),
tais como, o suporte material (duradouro)
e as características literárias na composição de seus enunciados, que
possibilitam transpor os níveis da efemeridade. Há, de fato, um “recorte do
cotidiano”, mas utiliza-se muito do ficcional e da subjetividade.
Rubem
Braga está registrado em nossa literatura como um cronista preocupado com as
relações humanas. Isto também está evidenciado na crônica sob análise. O ethos, por meio da enunciação, revela um
sujeito cuja ideologia é a religiosa. O texto, em questão, está repleto de
referências à mitologia cristã e à natureza, que permitem relacionar a crônica
com os tipos narrativos e exposição poética. Este ethos revela também, um homem boêmio, fraternal, irônico (no sentido apresentado por Berrendonner, como uma
atitude defensiva) e pacífico.
2. Fundamentação Teórica
Não
obstante nossa pesquisa ressaltar a questão do “fiador”, tal conceito está imbricado à noção de ethos e cenografia,
trazidos por Dominique Maingueneau na década de 1980, que retomando o ethos retórico, de Aristóteles, e a
distinção entre sujeito empírico e locutor, aduzidos por Oswald Ducrot (1984), acresceu prolongamentos relevantes e distinções ao que chamamos hoje de ethos discursivo.
Para
Aristóteles o ethos (retórico)
está relacionado à boa impressão que o sujeito quer transmitir ao auditório. Em
melhores palavras, a prova pelo ethos
consiste em causar boa impressão mediante a forma com que se constrói o
discurso, em dar uma imagem de si capaz de convencer... (POSSENTI, 2008, p.
56).
Oswald
Ducrot acentuou distinções:
Não
se trata de afirmações elogiosas que o orador pode fazer a respeito de sua
pessoa no conteúdo do discurso, afirmações que correm o risco, ao contrário, de
chocar o auditório, mas da aparência que lhe conferem a cadência, a entonação,
calorosa ou severa, a escolha das palavras, dos argumentos...Em minha
terminologia, direi que ethos está
associado a L, o locutor enquanto tal: é na medida em que é fonte da enunciação
que ele se vê revestido de certos caracteres que, em consequência, tornam essa
enunciação aceitável ou refutável (POSSENTI, 2008, p. 59)
Maingueneau
trouxe uma concepção de ethos voltada
para a análise do discurso:
Minha
perspectiva ultrapassa bastante o quadro da argumentação. Além da persuasão
pelos argumentos, a noção de ethos
permite refletir sobre o processo mais geral da adesão dos sujeitos a
determinado posicionamento... Ao meu ver, a noção de ethos é interessante
por causa do laço crucial que mantém com a reflexividade enunciativa, mas
também porque permite articular corpo e discurso em uma dimensão diferente da
oposição empírica entre oral e escrito. A
instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso não pode ser
concebida como um estatuto, mas como uma “voz”, associada a um ‘corpo
enunciante’ historicamente especificado.” (apud POSSENTI, 2008, p.
64)
(grifos nossos)
Assim,
finalmente, alcançamos o ponto que nos interessa. O autor nos traz o conceito
de ethos para textos escritos (lugar em que se concretiza o
discurso),
afirmando que todos possuem uma “vocalidade”,
que nos permite associá-la a “uma caracterização
do corpo do enunciador”, a “um
fiador, que por meio do ‘tom’, atesta o que é dito” (2008, p. 64). Este “fiador” é a instância que constituirá o ethos e validará a cenografia por meio
do processo enunciativo, por isso, como já afirmamos, são indissociáveis.
Sobre
o “fiador”, Maingueneau, em ato
continuo, conceitua:
Isso
que dizer que optei por uma concepção mais ‘encarnada’ do ethos, que, nessa
perspectiva, recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto das
determinações físicas e psíquicas associadas ao ‘fiador’ pelas representações
coletivas. Assim, acaba-se por atribuir
ao fiador um ‘caráter’ e uma ‘corporalidade’, cujo grau de precisão varia
segundo os textos. O ‘caráter’ corresponde a um feixe de traços psicológicos.
Quanto à ‘corporalidade’, ela é associada a uma compleição física e a uma forma
de se vestir. Além disso, o ethos implica uma forma de mover-se no espaço
social, uma disciplina tácita do corpo, apreendida por meio de um
comportamento. O destinatário o
identifica apoiando-se em um conjunto difuso de representações sociais,
avaliadas positiva ou negativamente, de estereótipos, que a enunciação
contribui para reforçar ou transformar. (apud POSSENTI, 2008,
p. 65)
(grifos nossos)
Em
poucas palavras, o autor determina assim, o “fiador” como uma concepção que dá forma ao ethos, ao qual por meio da enunciação atribuí-se um caráter e uma
corporalidade, que, por conseguinte, é incorporado pelo destinatário (relaciona-se o fiador a um
estereótipo, segundo a maneira como o próprio leitor se relaciona com o mundo
ético – cultural, associado a comportamento), confirmado ou
alterado pela enunciação.
Maingueneau
associa o significado de “incorporação”
ao modo como o destinatário se apropria do ethos,
atuando por meio de três registros:
- a enunciação da obra confere uma
‘corporalidade’ ao fiador, ela lhe dá corpo;
- o destinatário incorpora, assimila um
conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de relacionar-se
com o mundo habitando seu próprio corpo;
- essas
duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da comunidade
imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso (apud POSSENTI, 2008,
p. 65)
(grifos nossos)
A corporalidade somatizada à incorporação
feita pelo coenunciador cria um vínculo que atribui sentido à existência do
próprio discurso.
O
texto de nossa análise deixa bastante evidente a importância da figura do fiador (um sujeito voltado ao discurso mitológico cristão,
benevolente) na constituição do ethos (sujeito
compreensivo e
apaziguador para com seus vizinhos) e da cenografia (prédio urbano, onde o barulho não
é tolerado). É esse conjunto que faz com que o coenunciador
venha a aderir ao discurso como verdadeiro, digno de fé e razão, em melhores
palavras: o poder de persuasão de um discurso decorre em parte
do fato de que ele leva o destinatário a identificar-se com o movimento do
corpo, por mais esquemático que seja, investido de valores historicamente
especificados. (apud POSSENTI, 2008,
p.72).
É necessário trazer a baila o que Maingueneau
conceitua como ethos e cena da enunciação. Quanto ao último,
assim é entendido:
Por
meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar, inscrito na
cena de enunciação que o texto implica. Essa ‘cena de enunciação’ se compõe de três cenas, que propus chamar ‘cena englobante’, ‘cena genérica’ e ‘cenografia’
(Maingueneau 1993). A cena englobante atribui ao discurso
um estatuto pragmático, ela o integra em um tipo: publicitário, administrativo,
filosófico...A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, mas
construída pelo próprio texto...A
cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser
enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria
enunciação...A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o
discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas
aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo
de fala...A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso
e aquilo que esse discurso egendra: ela legitima um enunciado que por sua vez,
deve legitimá-la... (apud POSSENTI,
2008, p. 70-71)
Na crônica analisada, podemos com
segurança, distinguir a cena
englobante, como a literária; a cena
genérica, a crônica, e a cenografia, que
é o que a enunciação instaura: o Prédio no centro urbano do Rio de Janeiro da
década de 1950.
Com relação ao ethos, Dominique Maingueneau (2011) faz as seguintes distinções:
ü ethos
pré-discursivo (extra-discursivo),
situação em que o enunciador ocupa constantemente a cena midiática e tem
associado um ethos que pode ou não se
confirmar em enunciações distintas.
ü ethos
discursivo (mostrado),
que está mais próximo à concepção de Aristóteles.
ü E,
por fim, o ethos dito, fragmentos do texto em que o enunciador evoca a
própria enunciação ou a própria maneira de enunciar.
É por este último ethos, o dito, que se constrói a figura do que o autor chama de antifiador.
Trata-se da personificação de um corpo
que se opõe ao discurso do fiador, ou
seja, assim como a enunciação confere corporalidade ao enunciador que ela
materializa, admitindo a construção do
corpo da comunidade imaginária daqueles que aderem a um determinado discurso,
esta mesma enunciação pode também criar um anti-ethos
(uma imagem
distorcida que equivaleria ao oposto do discurso do fiador).
O enunciador da crônica “Recado ao Senhor 903”, possui um ethos pré-discursivo, posto que Rubem Braga, além de relevante
escritor, ocupou cargos públicos e envolveu-se em questões sociais, como o
movimento constitucionalista (1932)
e o cargo de embaixador em Marrocos entre 1961 e 1963. Tais fatos podem nos induzir a interpretações e inferências
além daquelas que o texto permite. Por esta razão, enquanto analistas, tomamos
especial cuidado.
Quanto ao ethos discursivo,
aquele que realmente nos interessa para objeto de análise, veremos, mais adiante,
como seu enunciado remete à questão do sagrado (ao texto sagrado), à natureza e ao homem em sua essência, além de,
também, se constituir por meio da figura de um antifiador, posto que em parte do enunciado o enunciador nos parece
estar alheio, não fazer parte daquela cena constituída, buscando no discurso
cristão argumentos que desvalorizem o mundo regrado e individualizado, criado
pelo homem sob o prisma da razão e do egocentrismo.
Por fim, é digna de nota a questão ideológica que norteia a crônica de
Braga. Existe uma forte relação polêmica entre a formação discursiva religiosa
e a política (ligada à legalidade), na qual o enunciador desqualifica seu adversário, que é a lei e a
ordem acima das questões humanísticas, exaltando a paz e a comunhão.
Nenhum discurso está livre de marcas ideológicas do sujeito, neste caso,
a crônica revela um enunciador que conhece a realidade da sociedade urbana,
regida por direitos e deveres individuais, apática e inerte com relação às
condições humanas. Consoante Brandão,
(...)
a ideologia escamoteia o modo de ser do mundo. E esse modo de ser do mundo,
veiculado por esses discursos, é o recorte que uma determinada instituição ou
classe social (dominante) num dado sistema (por exemplo, o capitalista) faz da
realidade, retratando assim, ainda que de forma enviesada, uma visão de mundo. (apud
AMOSSY,
2011, pp. 31-32).
Verificamos, por meio do discurso, que o
enunciador evidencia e traça severas críticas a esse comportamento capitalista,
em que “ter” é mais relevante que “ser” (principio filosófico e psicanalítico, Erich Fromm),
em que a posse determina o individualismo e um mundo ditado por regras de
convivência, em que um não importune o outro.
Esse aspecto da análise relaciona-se ao
que Maingueneau conceitua de “Heterogeneidade
Constitutiva”, que incide sobre manifestações não marcadas na superfície do
texto, porém a análise do discurso pode defini-las, formulando hipóteses, por
meio do interdiscurso, a respeito da constituição de uma formação discursiva.
Fala-se de
‘heterogeneidade constitutiva’ quando o discurso é dominado pelo interdiscurso:
o discurso é somente um espaço no qual viria introduzir-se, do exterior, o
discurso do outro; ele se constitui através de um debate com a alteridade,
independente de qualquer traço visível de citação, alusão etc. (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2012, p. 261)
Dominique Maingueneau aborda também a “Heterogeneidade Mostrada”:
A
‘heterogeneidade mostrada’ corresponde à presença localizável de um discurso
outro no fio do discurso. Distinguem-se as formas não marcadas dessa
heterogeneidade e suas formas marcadas
(ou explícitas). O coenunciador identifica as formas não marcadas (discurso indireto livre, alusões, ironia,
pastiche...) combinando em proporções a seleção de índices textuais ou
paratextuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao contrário, são assinaladas
de maneira unívoca; pode tratar-se de discurso direto ou indireto, de aspas,
mas também de glosas que indicam uma não coincidência do enunciador com o que
diz...). (CHARAUDEAU
& MAINGUENEAU, 2012, p. 261).
Sob esse aspecto, percebemos que o texto
é narrado em primeira pessoa e predomina o discurso direto (necessário relevar o uso do
gênero recado como suporte apelativo do enunciador)
o efeito polifônico mais iminente é a Ironia,
embora com dimensões muito mais defensivas do que ofensivas, afinal, o intuito
é discordar da forma impessoal como os sujeitos se relacionam. Por conseguinte,
é também esse tom irônico que personificará e dará voz ao antifiador.
Há também os usos das aspas nos
dois parágrafos finais, cujo objetivo é atribuir caráter de autoridade,
veracidade, posto que remete, através da intertextualidade, ao texto sagrado da
mitologia cristã (compartilhar
o pão e o vinho).
O uso das aspas também representa hipótese, algo irreal no contexto desenvolvido
pelo discurso.
3. Condições de
Produção e Recepção da Crônica de Braga
Conforme
dissemos anteriormente, o texto foi escrito entre os anos de 1953 e 1955, para
integrar o livro “A Cidade e a Roça”.
Não houve publicação em jornal (como seria típico), certamente, por esta razão, possui muitas características do gênero
literário (subjetivo e estruturado tipologicamente sob a
narrativa e a exposição poética). O suporte
também é duradouro, diverso do jornal. O livro permite que o texto dure por
mais tempo.
Cumpre-nos
destacar que o sujeito empírico, Rubem Braga, morou no Rio de Janeiro (em Copacabana) à época em que escreveu “Recado ao Senhor 903”, pôde observar o contexto e as consequências
da modernização do espaço urbano. As crônicas do autor durante a década de 1950
retratam bem as grandes mudanças de caráter social, cultural e urbano na cidade
(antiga capital), por isso a
problematização dessa crônica nos parece tão real, quase como um relato.
Aliás, Braga
contribuiu imensamente para o reconhecimento do gênero crônica durante a década
de 1930, quando se popularizou por meio dos principais jornais do Rio de
Janeiro. Considerada como um gênero menor entre os textuais, segundo Antonio
Candido (1992), por não termos literatura
constituída apenas de crônicas, ela passou a permitir que o cronista pudesse
transitar entre o jornalístico, o histórico e o literário, mantendo
características próprias (ambiguidade, brevidade, subjetividade, diálogo e
durabilidade relativa, conforme o suporte – jornais, revistas, livros ou
internet).
Na crônica, Recado ao Senhor 903, em especial,
observamos a princípio um contexto imediato, que é o prédio,
em que vizinhos se desconhecem por nomes próprios, referindo-se uns aos outros pelos
números dos apartamentos, os quais são lembrados somente em momentos de
conflito.
O enunciador recria o cenário urbano da
década de 1950, sendo o morador de um apartamento cravado, exatamente no meio,
entre os vizinhos a quem chama de 903, 1001, 1004, 1005 e 1103. Ele é o causador
de barulhos inoportunos em horários contrários ao regimento do prédio e à
própria lei.
Existe uma clara crítica ao
individualismo, à falta de intimidade e calor humano, além da intolerância
entre iguais. O texto revela também
um interdiscurso religioso (comunhão,
intenção de ressuscitar aquele que foi crucificado, não corrupção das relações
humanas).
5) Da Constituição do
Fiador ao Antifiador. Elementos de formação do Ethos e da Cenografia.
Vizinho,(...)
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do
zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em
meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser
meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado
com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e,
se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem
trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no
903 quando há vozes, passos e músicas no 1003.Ou melhor; é impossível ao 903
quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu,
ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de
outros.
O início da crônica é marcado por frases
de períodos curtos, ausência de parágrafos e pensamentos fragmentados. Ao que
nos parece o enunciador tem pressa; pressa em dizer logo a que veio, em não
ocupar desnecessariamente o tempo do outro, em ser breve e impessoal como são
os números a que se atribuem uns aos outros.
Por conseguinte, verificamos que não se
destaca no fiador a corporalidade,
mas, sim, o caráter. Esse primeiro enunciado conduz o coenunciador a constituir
um fiador pautado em bom senso,
compreensivo, que reconhece seu erro e verifica a razão e a ordem que guarnecem
seu vizinho.
Por outro lado, esse mesmo fiador produz no enunciado um tom
irônico, justamente pela indefinição de nomes, que se limitam ao “homem do 1003” e ao “Senhor 903” (empilhados entre
dezenas de outros). Números não refletem estado de humor,
não reclamam, são expressão do exato, do incontestável. A ironia está no jogo
com os números, que cria efeito de humor e crítica. Segundo Maingueneau, ao
tratar da heterogeneidade mostrada, a
ironia se caracteriza por meio de um enunciado que
...faz ouvir uma voz diferente da do ‘locutor’, a voz de
um ‘enunciador’ que expressa um ponto de vista insustentável. O ‘locutor’
assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam. Evidentemente,
isto exige que uma marca de distanciamento apareça entre as palavras e o
‘locutor’; caso contrário, o ponto de vista do ‘enunciador’ lhe seria
atribuído. (1997, p. 77). (grifos nossos)
...na ironia
faz-se ouvir uma voz distinta daquela do locutor: nessa perspectiva, uma enunciação irônica põe em cena uma
personagem que enuncia algo de deslocado e do qual o locutor se distancia por
seu tom e sua mímica. Ele se coloca como uma espécie de imitador dessa
personagem que se exprime de maneira incongruente...” (2001, p. 95). (grifos
nossos)
Concluímos
que “o homem do 1003” é esse locutor
L, a que Ducrot se refere, que apresenta
a enunciação irônica como expressando a posição de um enunciador E (MAINGUENEAU,
2001, p. 95).
Outrossim, quanto ao fiador, temos a constituição de um
caráter (sensato,
compreensível, porém crítico ao distanciamento entre as pessoas)
incorporado pelo coenunciador ao reconhecer o conflito inicial (desentendimento entre vizinhos),
o que legitima os enunciados construídos pelo enunciador e constitui um corpo,
que implicará na formação do ethos.
Destarte, no trecho seguinte da crônica,
temos:
“Eu, 1003, me
limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao
Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos
esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico
fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nós
agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua.”
Ressalta-nos aqui a formação de uma
cenografia, que relaciona a localização do 903 ao interdiscurso da mitologia
cristã. Neste caso não temos um “empilhamento
de dezenas de números”, como o enunciador ironiza no primeiro trecho, mas
sim, coordenadas geográficas que para levar à compreensão, o coenunciador
precisa observar além da camada superficial do texto.
1001: Oeste 1003
|
leste: 1005
|
903 (Crucificado)
|
Notamos pela cenografia acima,
constituída pela localização dos apartamentos, a intenção, por meio da proximidade,
da comunhão e através da natureza não corrompida nas relações humanas, de
ressuscitar aquele que está crucificado.
Mas, se por um lado a cena criada pelo
enunciador remete ao texto sagrado, por outro lado na expressão seguinte: “Todos esses números são comportados e
silenciosos: apenas eu e o Oceano
Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis;
nós dois apenas nós agitamos e bramimos ao sabor
da maré, dos ventos e da lua.”, retoma-se o tom de
ironia. O léxico “apenas” intensifica
o sentido de exclusão do 1003 em relação aos demais moradores, crítica evidente
ao isolamento imposto pelo estilo de vida urbano.
É justamente esse tom polifônico da
ironia que cria o estereótipo do antifiador. Segundo Maingueneau
(1984/2005b),
Essa
desqualificação da imagem do Outro
pelo Mesmo pode ser depreendida
quando o fiador do discurso agente cria, no interior de seu próprio discurso, o
estereótipo de um antifiador, conferindo-lhe voz, que sendo apresentada em
forma de simulacro, é ironizada e desqualificada pelo discurso citante...Também
quando o fiador do discurso agente evoca indiretamente, por meio do ethos dito, o anti-ethos do discurso paciente, aquele que se encontra na posição
de traduzido. (in http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7676)
Observamos, por meio dos recortes feitos
até aqui, que o enunciador constitui de fato um antifiador, pois em
nenhum momento o fiador parece fazer
parte da realidade descrita, não existe identidade do fiador com a cena construída, tanto que a crítica vem em tom de
ironia com o jogo dos números, o que permeia todo o discurso, exceto o final,
em que, atipicamente ao gênero (enquanto
recorte do cotidiano, dificilmente a crônica propõe um deslinde ao conflito),
o enunciador propõe uma solução. Ainda, conforme Maingueneau (2011, p. 79)
vimos presente o antifiador quando “desqualificado de maneira por assim dizer
performativa pela enunciação que o apresenta”.
Percebemos a constituição desse antifiador, a que tanto exaltamos neste
ponto, também no trecho que segue,
Prometo sinceramente
adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago
azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a
se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as
8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua,
onde ele trabalha na sala 305.
O fiador
ganha corporalidade e caráter à medida que, reconhecendo não se adequar a um cenário próprio, convence o
coenunciador sobre a falta de intimidade entre vizinhos, pessoas próximas, que
outrora, saberiam resolver seus conflitos por meio dos laços pessoais. Eis um fiador preocupado com questões humanas,
de afetuosidade e comunhão.
Entretanto, esse mesmo trecho retoma o
efeito irônico pelo excesso de números, e pelo paradoxo entre manter “um comportamento de manso lago azul” (metáfora para dizer que fará
silêncio) e “quem vier
à minha casa será convidado a se retirar às...” (continuar recebendo pessoas, que
é a causa do barulho). Esse tom irônico também faz com que o
coenunciador se surpreenda com o discurso, pois parece conduzi-lo a um sentido
e bruscamente aponta para outro, oposto. Vimos com esse efeito, enquanto
analistas, que na verdade se trata do discurso adversário, do anti-ethos, que busca desqualificar seu
oponente.
Não queremos ser repetitivos, mas é
interessante ressaltar que o discurso é inteiramente imbricado entre a
enunciação do fiador, a quem
descrevemos inicialmente, e este antifiador,
imagem distorcida, inversa, que pelo tom polifônico da ironia desqualifica a
imagem do “outro” (daquele que está
preocupado com a não perturbação do silêncio, com a manutenção da ordem, e do
espaço físico individual).
Em continuidade, no recorte abaixo,
ressaltamos as qualidades do fiador:
Nossa vida,
vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável
quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos
limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo
silêncio. (Grifos nossos)
Para Maingueneau: “(...) a qualidade do ethos remete a um fiador, que
através desse ethos se proporciona uma identidade à medida do mundo que
supostamente deve surgir”. (2001, p.143).
Reservados os tons irônicos presentes em
todo o discurso até então, esse trecho finaliza a qualidade do fiador. Temos
então o ethos apaziguador, de um
sujeito preocupado em buscar a conciliação, por meio do resgate das relações
humanas, da solidariedade e do comprometimento.
Os traços psicológicos desse sujeito
também são corroborados pelo estilo da enunciação, basta observar os usos dos
verbos de elocução, no presente do indicativo (que reforça a presença ativa do enunciador na
instância narrativa), o que revela veracidade de algo ruim,
“reconheço”, portanto há um respeito
e arrependimento sincero e a função apelativa “peço-lhe”, o que aduz alguém que roga pela paz.
Reparamos, também, que o final da
crônica é agora pautado por períodos longos, sem pensamentos fragmentados e
apressados como visto no início,
[...] Mas que me seja permitido sonhar com
outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse:
‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o
outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui
estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua
é bela’.
E
o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do
vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o
murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e
o amor e a paz.
Temos revelado o ethos do fiador, cuja
ideologia é a religiosa. Além de apaziguar, o sujeito propõe resolver o
problema junto ao vizinho, imaginando uma grande comunhão, tal como a da
mitologia cristã, em que Jesus multiplicou e dividiu seu alimento e partilhou
ensinamentos sobre o amor ao próximo e a paz entre os homens.
Existe uma predominância da tipologia
exposição poética, que acrescido dos usos dos verbos no pretérito imperfeito do
subjuntivo, “...em que um homem batesse à porta do outro...”; “E o outro respondesse”; “...E o
homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas
do vizinho entoando canções para agradecer a Deus”, remete-nos ao sonho
ideal, a um desejo lírico (adjetivo),
porém distante, de que as pessoas retomassem os mais nobres valores que permeavam
as relações humanas.
Aliás, é a proximidade da crônica à literatura
que permite ao enunciador evocar figuras de linguagem, como a metáfora (...“um comportamento de manso lago azul”...)
e a prosopopeia (...“nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao
sabor da maré”...“murmúrio da brisa
nas árvores”...).
Por fim, não devem passar despercebidos os
usos das aspas nos dois parágrafos finais, cujo objetivo é atribuir caráter
de autoridade, veracidade e incontestabilidade, posto que evoca, através da
intertextualidade, um texto sagrado para os cristãos. Reforça-se também pelos
usos desse sinal tipográfico a representação da hipótese, de algo irreal.
Também é digna de observação a questão
dos pronomes possessivos utilizados ao longo do texto. Percebemos que a
princípio eles realmente indicam posse com relação às pessoas do discurso, mas
no início (meu apartamento...sua veemente reclamação...me
limito a Leste...ao meu número) parecem demarcar o
espaço físico de cada morador, que não deve ser ultrapassado. Já ao final (Nossa vida...e coma de meu pão e bebe de meu
vinho) estão empregados em um contexto de comunhão.
Os elementos da natureza também são
relevantes (...maré...ventos...lua...manso lago
azul...estrelas...árvores...), pois estão
relacionados ao modo de vida que almeja o fiador,
diverso do urbanizado. Podemos associar essa natureza à própria união entre os
homens.
Isso posto, concluímos por nossa opção
de análise e recortes do texto, que é por meio da constituição do fiador (em que o caráter, os traços psicológicos, saltam
mais aos olhos) e do antifiador
(estereótipo que
ganha voz, se apresentando em forma de simulacro, mas que é ironizado e
desqualificado pelo discurso citante) que determinamos a
qualidade do ethos (sujeito apaziguador, de ideologia
religiosa) e do anti-ethos
(aquele que está
preocupado com a não perturbação do silêncio, com a manutenção da ordem e do
espaço físico individual), bem como, validamos a cena de enunciação (a cena englobante – literária – a cena
genérica – crônica e a cenografia
– cena de fala que o discurso pressupõe para ser enunciado, que retrata conflito entre vizinhos, e
que válida a própria enunciação).
O discurso também é permeado pela “heterogeneidade mostrada”, em especial a
ironia, que desqualifica o antifiador, e pela “heterogeneidade constitutiva”, relacionada à polêmica entre a
formação discursiva religiosa e a política (ligada à legalidade).
6) Considerações Finais
Vimos, pela exposição das estratégias
discursivas analisadas, a constituição de um ethos, por meio de um fiador,
o qual nos revelou um mundo ético estruturado no centro urbano de uma grande
cidade da década de 1950, retratando os conflitos típicos de uma sociedade
individualista e materialista, por meio da discórdia entre moradores vizinhos
de condomínio.
O texto é norteado pelo tom da ironia,
cujo objetivo é constituir um antifiador,
que em oposição ao ethos
ideologicamente religioso, aduz um discurso pautado pela lei e a ordem. É esse
discurso que nos permite também moldar o anti-ethos.
O coenunciador é envolvido à medida que
o fiador desqualifica e ironiza o
discurso atribuído ao antifiador,
convencendo sobre a falta de diálogo e proximidade entre as pessoas que dividem
o mesmo espaço nos grandes centros urbanos. O fiador também não se identifica com a cena construída, opõe-se todo
o tempo ao regramento e distanciamento imposto com naturalidade pelos moradores
do prédio.
Por fim, é o discurso pautado pela
ideologia, que evoca o texto sagrado da mitologia cristã, que conduz o
coenunciador a aderir ao fiador e
reconhecer a desqualificação do antifiador.
Por outro lado, existe um evidente
entrelace entre fiador, ethos, cenografia
e heterogeneidade. Pois nenhuma
dessas instâncias pode ser admitida em separado no discurso. Se o fiador
atribui o caráter e o simulacro ao qual o destinatário anui, o ethos é esse
corpo movendo-se por meio da enunciação e integrando a cenografia que valida a
cena de fala e que ao mesmo tempo é validada.
Embora não seja objeto de nossa
pesquisa, e nem tínhamos a intenção que fosse, a questão linguística também
determina o percurso do discurso. Pois é pelas escolhas subjetivas, pelos
sentidos semânticos do léxico e pelas figuras de linguagem, que atribuímos ao
texto literário maior significação.
Difícil permitir que passassem
desapercebidos, na análise desse texto, a seleção dos verbos (designando um sentido semântico
único a ação que o enunciador desejou expressar) e os usos dos
pronomes possessivos (que
designam posse em relação às duas pessoas do discurso, “eu” e o “tu”, além da
não pessoa “ele” – por isso sua predominância,
já que a todo o momento fala-se do espaço individual),
além das metáforas e outras figuras de linguagem que atribuem um sentido
poético.
7) Referências
Bibliográficas
AMOSSY,
Ruth. IMAGENS DE SI NO DISCURSO a construção do ethos. 2ª edição. São Paulo:
Editora Contexto, 2011.
BRANDÃO,
Helena Nagamini (2008) Discurso, gênero e cenografia enunciativa. In
MICHELETTI, G. (org.) Enunciação e gêneros discursivos. São Paulo:
Cortez Editora.
CANDIDO,
Antônio et al. (orgs.) A crônica: o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. São Paulo: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1992.
CHARAUDEAU,
Patrick e MAINGUENEAU, Dominique.
Dicionário de Análise do Discurso. 3ª edição. São Paulo: Contexto, 2012.
Coordenação da tradução Fabiana Komesu.
MAINGUENEAU,
Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. IN AMOSSY, Ruth. IMAGENS DE SI NO
DISCURSO a construção do ethos. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
__________________________.
Novas tendências da Análise do Discurso. 3ª edição. Campinas, São Paulo:
Pontes/Ed. da UNICAMP, 1997.
__________________________.
Elementos de linguística para o texto literário. 1ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
__________________________.
Cenas da Enunciação. Tradução e organização de Sírio Possenti e Maria Cecília
Pérez de Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola, 2008.
ORLANDI,
Eni P. Análise de Discurso. 5ª edição. Campinas: Pontes, 2003. (Coleção
Princípios & Procedimentos).
Outras fontes de pesquisa:
Sobre
antifiador, segundo Maingueneau: FERREIRA, Ilda. “Do Trabalho prescrito ao trabalho
realizado: uma reflexão sobre as aulas de leitura”. Dissertação de
Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. PUC. São Paulo, 2008.
Acesso em 17/05/2013.
Recado
ao senhor 903
Vizinho
–
Quem
fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do
zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em
meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser
meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado
com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e,
se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem
trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar
no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao
903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor
sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre
dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao
Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo
903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas
eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários
civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e
da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um
comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao
meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa
repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o
levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida,
vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um
número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de
seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas
que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem
batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi
música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come
de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois
descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”. E o homem trouxesse sua mulher,
e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para
agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o
dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
Rubem
Braga
Prezados, a formatação ficou desconfigurada, mas, o texto original esta no link "Textos Recomendados". Bjs.
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